terça-feira, 29 de junho de 2010

Espiar na TV e no quarto fechado

De março a novembro, desde 1981, a Sociedade Científica Sigmund Freud organiza atividades em sua sede em Pelotas, habitualmente no mesmo dia da semana, em recordação da Sociedade Psicanalítica das Quartas-Feiras, fundada por Freud em 1902.

Para iniciar 2007, na quarta 14 de março, o psicanalista José Francisco Rotta Pereira palestrou sobre o Big Brother Brasil (BBB-7, na época) e suas implicações psicológicas. Mesmo não sendo um seguidor dessa "novela", ele detectou aí quatro níveis paralelos:
- os programas de TV aberta editados (que censuram nudez e palavrões),
- o programa 24 horas em canal pago (autocensurado pelos edredons),
- o que acontece na casa mas não vai ao ar, e
- o "programa" que nossas mentes imaginam e desejam ver. Sem este roteiro inconsciente, os anteriores não existiriam.

Nossa curiosidade natural por ver o que está oculto - e especialmente o que não tivemos autorização para ver, em nossa infância - dá sentido a atividades culturais como o teatro e o cinema (em seu próprio étimo, a televisão já denuncia nosso voyeurismo: ver à distância). Há quem use binóculos exclusivamente para espiar a vida alheia, o que denota uma necessidade ainda mais específica de observar cenas íntimas.

De acordo à psicanálise freudiana, a cena última que motiva nosso interesse é, invariavelmente, o encontro sexual de nossos pais, o “drama edípico”, isca principal do BBB e das telenovelas em geral (à direita, foto do Big Brother britânico).

José Francisco mencionou também a teoria darwinista. No ambiente natural, os machos brigam pelo poder e as fêmeas buscam o macho mais apto para a reprodução. Os instintos de sobrevivência normalmente estão associados aos instintos eróticos, explicou o psicanalista, mas em situações altamente estressantes - como o enjaulamento ou a vida numa ilha deserta - eles se dissociam e aparecem os comportamentos violentos, as intrigas, a dissolução dos valores civilizados, a regressão aos instintos mais primitivos.

Todos nós temos esses instintos básicos, mas sob alto stress eles podem descontrolar-se. Às vezes, repressões intensas demais podem originar perversões como o fetichismo, a pedofilia, as compulsões, o voyeurismo patológico e outros sintomas. Em outras palavras, se não fosse pela repressão neurótica pareceríamos tarados sem controle (uma colocação freudiana, frisou o palestrante)... e o BBB não poderia ser transmitido na TV aberta.

O assunto é mais complexo do que parece, e ele poderia bem voltar à palestra nestas quartas-feiras pelotenses até 2012 (ano da última edição contratada pela Globo). No entanto, o assunto é de permanente interesse na psicanálise.

Freud fala inicialmente do voyeurismo em 1905, no primeiro dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade ("As aberrações"), e fará inúmeras correções a esse texto nos 20 anos seguintes. Se ele vivesse hoje, falaria da TV como um canal de expressão de nossa curiosidade visual e sexual, manifesta ou dissimulada, normal ou desviada.

Sem usar a palavra "voyeurismo", a edição inglesa preferiu escopofilia para referir-se ao "prazer de olhar". A versão espanhola - que também lê do original alemão - traduz como "instinto visual". Todas essas expressões se referem à curiosidade instintiva da criança (não limitada ao sentido da visão), que pode ou não derivar em perversões, posteriormente.

Entre uma enorme variedade de alterações, o voyeurista mais perturbado (forma pura) seria aquele cujo único prazer sexual provém da observação de intimidades alheias, sem que o observado saiba da presença do curioso. Em outros casos, o observador aceita ser visto, ou consegue sentir prazer por formas interativas, ou pode gerar prazer no outro etc.

Indiretamente, Freud alude a sua própria curiosidade visual quando explica o uso do divã. Ele diz que o não olhar-se de frente tem várias vantagens (para ele ausentes na relação cara-a-cara com o paciente):
  • Não posso suportar ser encarado fixamente por outras pessoas durante oito horas ou mais por dia
    [Na versão espanhola: Não resisto passar oito ou mais horas por dia tendo o olhar de alguém constantemente fixado em mim].
  • Visto que, enquanto estou escutando o paciente, também me entrego à corrente de meus pensamentos inconscientes, não desejo que minhas expressões faciais deem [a ele] material para interpretação ou influenciem-no no que me conta
    [a ideia não é comunicar-se, mas estimular o narcisismo do paciente].
  • Em geral, o paciente encara [a posição do divã] como um incômodo e rebela-se contra ele, especialmente se o instinto de olhar (escopofilia) desempenhar papel importante em sua neurose
    [ou seja, se o paciente for mais curioso que o analista].
    Insisto nesse procedimento, contudo, pois seu propósito e resultado são
    [a] impedir que a transferência se misture às associações do paciente,
    [b] isolar a transferência e
    [c] permitir-lhe que [essa transferência] apareça, no devido tempo, nitidamente definida como resistência.
    Fonte: Sobre o início do tratamento, 1913; transcrito da edição eletrônica das Obras Completas.
    [As expressões entre colchetes e itálico foram acrescentadas para esta nota].

Em outras palavras, o psicanalista precisa de uma alta curiosidade e um alto prazer em observar os comportamentos alheios, maiores que o normal das pessoas que gostam de cinema, teatro ou TV. A falta de pudor deve ser tal que ele possa, sem falsos escrúpulos, pesquisar na intimidade sexual dos pacientes, sem mesclá-la com a própria, como se estivesse vendo um escabroso reality show, oito ou mais horas por dia e cada vez mais interessado (talvez por isso muitos psicólogos e psiquiatras não suportem ver um minuto de BBB, que lembra em parte o seu próprio trabalho). Pacientes mais exibicionistas adorarão o método do divã, mas outros (mais escopofílicos) precisarão de um analista mais próximo, tranquilizante e participante.
Imagens da web (foto 4: "Voyeur", Juanjo Fernández)

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Psicanalista de pobre

No Programa do Jô desta segunda (21), o jornalista cearense Xico Sá apresentou mais um livro de reflexões humorísticas sobre o comportamento sexual: Chabadabadá - Aventuras e desventuras do macho perdido e da fêmea que se acha. No meio da entrevista, ele comenta: o cachorro é o psicanalista do pobre.

Não se pode desconhecer que o cão recebe as descargas de mau humor do seu dono, seja em forma de pontapés ou de longos e amargos relatos. Ouve pacientemente, dia após dia, sem comentar nem intervir nos relatos, chegando a uma identificação mútua com "o outro" paciente. Pobre ouvinte, diria um observador.

Já que muitos falantes se aliviam pelo falar livremente - sem precisar que o outro entenda - a função catártica fica realizada. Só faltaria a função terapêutica, a verdadeira análise, que custa mais caro (aos ricos). Não esqueçamos que a "terapia pela fala", como ficou batizada a psicanálise em seus começos, não é um simples monólogo.

A piadinha não pertence a Xico Sá, pois Mário Quintana já havia dito algo muito parecido na crônica Para que serve um cachorro?: "Antes de tudo, um cachorro serve para a gente falar sozinho... Que o digam esses vagabundos de estrada, a quem pode faltar tudo, menos um cachorro" (Da preguiça como método de trabalho, p. 228. Globo, 2007).

Freud não foi humorista mas analisou o humor como os humoristas dissecam os defeitos humanos. Conta-se dele que teria usado de fina ironia quando os nazistas lhe fizeram escrever uma declaração de bom trato (leia o relato no blogue de Luiz Zanin).


Freud aprendeu espanhol para entender o Quixote

Sr. Don Luis López-Ballesteros y de Torres.

Siendo yo un joven estudiante, el deseo de leer el inmortal "Don Quijote" en el original cervantino me llevó a aprender, sin maestros, la bella lengua castellana.

Gracias a esta afición juvenil puedo ahora - ya en edad avanzada - comprobar el acierto de su versión española de mis obras, cuya lectura me produce siempre un vivo agrado por la correctísima interpretación de mi pensamiento y la elegancia del estilo.

Me admira, sobre todo, cómo no siendo usted médico ni psiquiatra de profesión ha podido alcanzar tan absoluto y preciso dominio de una materia harto intrincada y a veces oscura.

Freud
Viena, 7 de mayo de 1923

O trecho acima se lê no início da tradução das Obras Completas de Freud ao espanhol, sob o título Unas palabras del Dr. Freud sobre la versión castellana de sus Obras Completas.

Aos 67 anos (feitos no dia anterior), o autor dizia comprovar o acerto dessa versão - pois aprendera espanhol na adolescência, sem professores, exclusivamente para ler o Quixote no original - e declarava dois sentimentos: o agrado (com certeza, envaidecido) por ver-se tão bem interpretado e a admiração por o tradutor não médico dominar tão bem a psicanálise, assunto intrincado (complexo) e por vezes obscuro (nebuloso).

Em 1923, somente uma parte da obra de Freud se encontrava vertida ao espanhol. O trabalho levou várias décadas, mas já no início o escritor deu sua aprovação geral ao estilo de Luis López-Ballesteros (de sobrenome materno Torres), o que não significa que ele tivesse revisado toda essa tradução. O trabalho saiu em 1948, em dois volumes totalizando pouco mais de 2300 páginas. O terceiro volume (1070 páginas) foi terminado em 1968, com tradução de Ramón Rey Ardid.

Aos 18 anos, Freud estudava espanhol com o colega de escola Silberstein, e dizia terem ambos fundado, assim, uma Academia Castelhana. Valiam-se da Gramática, algum dicionário e obras de Cervantes. Foi este último autor que motivou o futuro psicanalista-literato a prosseguir estudando espanhol e ambicionar a leitura completa do Quixote. Nessa idade, Freud já lia Shakespeare no original e recitava trechos completos em inglês. Estas informações se encontram em Freud e a literatura, de E. Portella Nunes e C. H. Portella Nunes, capítulo do livro “Freud e Shakespeare”, dos mesmos autores (Imago, 1989).

Em sua obra, Freud analisou muito mais os personagens trágicos de Shakespeare, como Hamlet e Macbeth, do que a personalidade de Dom Quixote. Identificado com este e com uma defesa quixotesca da psicanálise, Freud lutaria contra moinhos de vento, reais e poderosos. A conexão é feita pelo gaúcho Moacyr Scliar, médico também judeu, no artigo O caso de Dom Quixote.

A conexão Freud-espanhol-Cervantes-Quixote-Freud fechou o círculo do autoconhecimento. O leitor busca as luzes para sua própria vida. O mesmo princípio de que "somos o que lemos" foi explorado por Sérgio Rouanet na alentada obra "Os dez amigos de Freud" (Companhia das Letras, 2003, 2 vols.), uma incrível tese de superdoutorado totalizando 864 páginas.

Em 1956, Cândido Portinari pintou o Quixote (acima), em desenhos que Drummond "ilustrou" com poemas; o conjunto deu numa bela obra de arte em 1973 (leia artigo).

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Freud, gerador de empregos

Freud é o maior gerador de empregos do século XX.

Brincadeira ou não, essa foi uma das conclusões do encontro "Freud para todos", organizado em maio pela L&PM. A comprovação podia ser feita olhando para a plateia, naquela reunião na Livraria da Vila, em São Paulo, cheia de psicanalistas e estudiosos da obra de Freud.

A informação foi dada pelo blogue L&PM, da editora porto-alegrense Lima & Pinheiro Machado (leia a nota), que estava divulgando duas novas edições: "O futuro de uma ilusão" e "O mal-estar na cultura". O primeiro livro (Die Zukubft einer Illusion), traduzido diretamente do alemão por Renato Zwick, está à venda por 14 reais, na edição L&PM Pocket (veja apresentação).

Quem traduz do alemão não usa termos como ego ou id, preferindo "eu" e "isso". A terminologia em latim foi introduzida pelo tradutor inglês James Strachey, não sendo errada, mas sim alheia à intenção de Freud de se fazer entender, aos leigos, mediante termos comuns do seu idioma. De qualquer jeito, a psicanálise se popularizou, mas muitos termos ficaram na nebulosa academicista, gerada pela tradução inglesa (conhecida como Standard Edition) e pelas 5 versões que dela derivaram sem ler o original alemão; entre elas, está a que ainda usamos no Brasil.

No século XXI, o fundador da psicanálise ainda rende emprego a tradutores, editores, pesquisadores, vendedores, professores, terapeutas e todo o pessoal de apoio de bibliotecas, institutos, associações, congressos, agências de publicidade, de viagens etc. Mas considerá-lo como o maior gerador de empregos do século é um exagero e uma vaidade, dignas de análise. Tese para um livro. Ou seja, mais trabalhos gerados.