quinta-feira, 24 de junho de 2010

Freud aprendeu espanhol para entender o Quixote

Sr. Don Luis López-Ballesteros y de Torres.

Siendo yo un joven estudiante, el deseo de leer el inmortal "Don Quijote" en el original cervantino me llevó a aprender, sin maestros, la bella lengua castellana.

Gracias a esta afición juvenil puedo ahora - ya en edad avanzada - comprobar el acierto de su versión española de mis obras, cuya lectura me produce siempre un vivo agrado por la correctísima interpretación de mi pensamiento y la elegancia del estilo.

Me admira, sobre todo, cómo no siendo usted médico ni psiquiatra de profesión ha podido alcanzar tan absoluto y preciso dominio de una materia harto intrincada y a veces oscura.

Freud
Viena, 7 de mayo de 1923

O trecho acima se lê no início da tradução das Obras Completas de Freud ao espanhol, sob o título Unas palabras del Dr. Freud sobre la versión castellana de sus Obras Completas.

Aos 67 anos (feitos no dia anterior), o autor dizia comprovar o acerto dessa versão - pois aprendera espanhol na adolescência, sem professores, exclusivamente para ler o Quixote no original - e declarava dois sentimentos: o agrado (com certeza, envaidecido) por ver-se tão bem interpretado e a admiração por o tradutor não médico dominar tão bem a psicanálise, assunto intrincado (complexo) e por vezes obscuro (nebuloso).

Em 1923, somente uma parte da obra de Freud se encontrava vertida ao espanhol. O trabalho levou várias décadas, mas já no início o escritor deu sua aprovação geral ao estilo de Luis López-Ballesteros (de sobrenome materno Torres), o que não significa que ele tivesse revisado toda essa tradução. O trabalho saiu em 1948, em dois volumes totalizando pouco mais de 2300 páginas. O terceiro volume (1070 páginas) foi terminado em 1968, com tradução de Ramón Rey Ardid.

Aos 18 anos, Freud estudava espanhol com o colega de escola Silberstein, e dizia terem ambos fundado, assim, uma Academia Castelhana. Valiam-se da Gramática, algum dicionário e obras de Cervantes. Foi este último autor que motivou o futuro psicanalista-literato a prosseguir estudando espanhol e ambicionar a leitura completa do Quixote. Nessa idade, Freud já lia Shakespeare no original e recitava trechos completos em inglês. Estas informações se encontram em Freud e a literatura, de E. Portella Nunes e C. H. Portella Nunes, capítulo do livro “Freud e Shakespeare”, dos mesmos autores (Imago, 1989).

Em sua obra, Freud analisou muito mais os personagens trágicos de Shakespeare, como Hamlet e Macbeth, do que a personalidade de Dom Quixote. Identificado com este e com uma defesa quixotesca da psicanálise, Freud lutaria contra moinhos de vento, reais e poderosos. A conexão é feita pelo gaúcho Moacyr Scliar, médico também judeu, no artigo O caso de Dom Quixote.

A conexão Freud-espanhol-Cervantes-Quixote-Freud fechou o círculo do autoconhecimento. O leitor busca as luzes para sua própria vida. O mesmo princípio de que "somos o que lemos" foi explorado por Sérgio Rouanet na alentada obra "Os dez amigos de Freud" (Companhia das Letras, 2003, 2 vols.), uma incrível tese de superdoutorado totalizando 864 páginas.

Em 1956, Cândido Portinari pintou o Quixote (acima), em desenhos que Drummond "ilustrou" com poemas; o conjunto deu numa bela obra de arte em 1973 (leia artigo).

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