quinta-feira, 8 de julho de 2010

Freud comenta um livro cristão

Não só em livros sobre o significado da religião, mas em inúmeras passagens Freud se refere ao judaísmo, à Bíblia, a autoridades católicas (que governavam a Áustria de seu tempo) e a crenças cristãs. Mesmo pretendendo imparcialidade, predomina nele um tom pejorativo, ao reduzir sempre a religiosidade a um traço neurótico.

Num texto de 1921 sobre a psicologia de grupo, Freud comenta que é fácil observar a fuga de um grupo militar, mas bem mais difícil notar o fim de uma religião.

Ilustra o ponto com um romance que especulava sobre a caída do cristianismo: When it was dark (de Guy Thorne, pseudônimo do jornalista inglês Cyril Ranger Gull). O livro é pró-católico e foi até recomendado pelo bispo de Londres quando de sua publicação em 1903. Sem mencionar que o personagem conspirador era um judeu rico, Freud avalia o texto como "um hábil e convincente relato" sobre a dissolução de um grupo religioso.
  • O romance [...] conta como uma conspiração de inimigos da pessoa de Cristo e da fé cristã teve êxito em conseguir que um sepulcro fosse descoberto em Jerusalém. Nesse sepulcro encontra-se uma inscrição em que José de Arimateia confessa que, por razões de piedade, retirou secretamente o corpo de Cristo de sua sepultura, no terceiro dia após o sepultamento, e enterrou-o naquele lugar.
    A ressurreição de Cristo e sua natureza divina são dessa maneira refutadas e o resultado da descoberta arqueológica é uma convulsão na civilização europeia e um extraordinário aumento em todos os crimes e atos de violência, os quais só cessam quando a conspiração dos falsificadores é revelada
    (Psicologia de grupo e a análise do ego, seção V, volume 18 das Obras Completas).
O autor faz ver que a emoção ligada à debandada cristã não foi o medo (como num exemplo de pânico militar pela suposta morte do comandante), mas sim a crueldade, bem controlada até então pelo "amor equânime de Cristo", que unificava os fiéis como ideal do ego - parecido a como um general pacifica o seu regimento.

O amor de Cristo, segue Freud, somente valia para os crentes (aqueles com quem há o laço de amor e a mútua identificação do ego). Nisto o psicanalista não desconhece o evangelho, que exige repreender os erros dos irmãos, até estes se corrigirem, ou, caso contrário, ter o pecador como um não cristão. O texto bíblico imediatamente seguinte (ainda em Mateus, capítulo 18) ordena perdoar sempre, mas seria aplicável somente aos irmãos de fé . Por outro lado, Jesus também disse a frase pacifista: "Guardem a espada" (Mateus 26, 52).

A comunidade cristã, "mesmo que se chame a si mesma de religião do amor, tem de ser dura e inclemente para com aqueles que a ela não pertencem". Do mesmo modo - diz Freud neste texto - toda religião tem amor para seus fiéis e crueldade para os alheios a ela.

Em autorreferência indireta - ele que era vítima da intolerância religiosa (inclusive de cristãos) contra o povo judeu - Freud acrescenta que, quanto à crueldade, as pessoas descomprometidas da religião "estão psicologicamente em situação muito melhor" que as pertencentes a uma. Racionalmente, considera que, justamente por os crentes serem (e precisarem ser) tão intolerantes, não devemos ser severos demais ao criticá-los... "por mais difícil que possamos achá-lo pessoalmente" (outra sutil alusão ao que sente ser difícil: deixar de censurar os crentes).

Suas palavras tentam ser cuidadosas, pois ele mesmo era amigo pessoal de católicos e protestantes (mas o distanciamento é difícil, devido ao próprio sofrimento pela perseguição), e sua análise da intolerância parece fria demais, vazia do amor que percebe como falso nas religiões. A citação do livro inglês (figura acima) é uma sutileza sobre a tensão permanente entre judeus e cristãos, mas ele busca desviar o foco de sua situação pessoal.

Atento à política internacional - especialmente ao deslocamento da intolerância desde as religiões para o coletivismo marxista - Freud conclui notando que a violência religiosa havia amainado no século XX, mas não se poderia deduzir "uma suavização nos costumes"; ao contrário, a intolerância poderia até recrudescer.
  • A causa [da menor violência] deve ser antes achada no inegável enfraquecimento dos sentimentos religiosos e dos laços libidinais que deles dependem.
    Se outro laço grupal tomar o lugar do religioso - e o socialista parece estar obtendo sucesso em conseguir isso - [alusão à Revolução Russa de 1917], haverá então a mesma intolerância para com os profanos que ocorreu na época das Guerras de Religião [violência entre católicos e protestantes franceses, do século XVI], e, se diferenças entre opiniões científicas chegassem um dia a atingir uma significação semelhante para grupos, o mesmo resultado se repetiria com essa nova motivação
    (citação do mesmo texto de 1921, com parênteses acrescentados para esta nota).

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