sexta-feira, 2 de julho de 2010

A metáfora da ameba (ou do tatu-bola)

Diz Freud que, normalmente, a carga amorosa de uma pessoa se situa no próprio ego e pode estender-se para incluir objetos amorosos externos, indo e voltando segundo as interações.

A metáfora da ameba (à direita) ilustra esse movimento possessivo do ego. Quando este lança seus "braços", está saindo do narcisismo autoerótico e iniciando uma relação com um objeto diferente de si mesmo.

Segundo Freud, o eu psíquico tem uma energia sexual permanente (a libido), e parte dela é transmitida a objetos (amados ou odiados, segundo os investimentos afetivos), "assim como o corpo de uma ameba está relacionado com os pseudópodos que produz" (Sobre o narcisismo: uma introdução, 1914).

Num artigo posterior, ele explica melhor a comparação: o ego é um reservatório, de onde a libido vai em direção aos objetos e para onde retorna, de volta dos objetos. Como ele diz neste texto, a situação pode ser ilustrada por uma ameba, pois seu corpo emite pseudópodes, prolongamentos que se podem retrair a qualquer momento, de modo que a forma da massa protoplásmica seja restaurada. A libido do ego pode converter-se em libido objetal, e esta pode reconverter-se em libido do ego. "Para a completa sanidade, é essencial que a libido não perca essa mobilidade", remarca Freud (Uma dificuldade no caminho da psicanálise, 1917).

A metáfora reaparece na 26ª Conferência de Introdução à Psicanálise. Freud começa dizendo que certos seres unicelulares - em forma de glóbulos - emitem pseudópodes [figura à esquerda], nos quais irrigam sua substância protoplásmica, mas podem também retrai-los e recuperar a forma esférica original.

Diz logo que esses prolongamentos são a afluência de libido em direção aos objetos, enquanto a massa principal de libido permanece no ego. Em circunstâncias normais, essa libido do ego pode transformar-se em libido objetal com relativa facilidade, e inversamente esta pode novamente ser devolvida ao ego ("A teoria da libido e o narcisismo", 1917).

Neste último texto, a explicação serve para entender estados psíquicos tão diversos como o sono, o luto e a melancolia, as paixões amorosas, a demência precoce, as doenças orgânicas, o homossexualismo e a hipocondria. Mas não convém tomar literalmente a comparação com os protozoários, até porque o mesmo Freud reformulará em parte seus conceitos sobre o ego e o id. As amebas terão uma última e breve menção, no cap. 2 de "Esboço de Psicanálise" (1938).

Ainda seguindo o texto ao pé da letra, a analogia sugere duas manifestações contrapostas:
  • a libido do ego, situada no corpo (autoerotismo), é como uma bola (um tirano gordo e socialmente insuportável, pois monopoliza o amor), e
  • a libido objetal, contida nos membros (desejo amoroso voltado a outros), é a ameba com pés, agarrando as coisas de que gosta.
Na verdade, o ego é a mesma estrutura, e a libido é a mesma substância, investida seja dentro do ego, seja fora. O que varia são os movimentos dessa energia:
  • dentro da origem (egocentrismo),
  • em direção à periferia do ego (buscando amar ou odiar), ou
  • de retorno ao ego (retração depressiva, em casos como perdas e separações).
Se Freud fosse brasileiro, teria mencionado o mamífero tatu-bola (abaixo) e o artrópode tatu-bolinha (à direita), bichos que sabem andar de forma estendida e, às vezes, como defesa se encapsulam no próprio corpo. Depois, é claro, caminham de novo.

Ficamos admirados com essas mudanças animais, talvez por serem movimentos psíquicos como os que nós mesmos fazemos, de ida e de volta. No narcisismo, não amamos nem odiamos ninguém fora de nós mesmos. No apaixonamento, adoramos com tal facilidade um objeto externo que nosso ego parece ter desaparecido. No desapaixonamento, a retração dói bem mais.

A patologia aparece quando esse vaivém se paralisa. Quando se perde o objeto amado, sobre o qual o ego havia jogado seus braços, a libido investida pode não retornar ao ego. A pessoa se sente podre, como se tivesse "engolido" o objeto morto. Sem retrair os pseudópodes, o ego não consegue reconhecer-se como vivo, pleno, estimável, prazeroso, independente. Segundo outra imagem freudiana, o ego em depressão sente cair sobre ele a sombra do objeto perdido (Luto e melancolia, 1915).

A blogueira Cris Beretta diz que os namorados mais numerosos são como o sapo que finge ser príncipe mas nunca deixará de ser sapo (leia aqui). O mais perigoso é o namorado "tatu-bola" que após um tempo de paixão se transforma num peso inútil, pois deixa de falar e até de mover-se, fazendo a menina se sentir como uma bola que caiu num buraco (leia aqui).

Será este mecanismo narcisista exclusivo dos homens? É preciso tomar cuidado, então, com toda pessoa que aplica ao namoro as regras psicanalíticas de abstinência, neutralidade e regressão narcísica, que só deterioram com mais angústias a relação com o outro. Serve para a análise, mas não para a vinculação amorosa.

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